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17 abril 2007

dia de clarissa

Carta de Clarissa

Porque hoje faz vinte anos, julguei necessário organizar meu mundo em palavras e entregá-las a ti. Toma que são tuas. Tudo teu. Guarda-as, já que esta não é uma carta q se envia. É uma carta que fica. Quem precisa partir sou eu. Vou continuar minha jornada sem pena, mas é preciso que seja longe daqui. Longe dessas paredes que reverberam mantras de desespero. Longe desses fragementos de vida que insisto em cultivar num ritual ininterrupto. Eu, que até pouco tempo acreditava que viver de passado era bom.

Acreditei que a felicidade fosse possível, o amor fosse possível. Que não existissem só desencontros e covardia, mas amizade, delicadeza e compaixão. Esperava que o curso da vida seguisse etapas imutáveis. Nascer, crescer, envelhecer, morrer. Mas regras muitas vezes se quebram e minha existência está emoldurada no rol das exceções.

Nós, mulheres, temos o dom de lidar com isso que chamamos de fatalidade e sobre as quais não temos qualquer controle. Aprendemos desde cedo a nos conformar com os acasos brutais que nos roubam saúde, segurança, ideais, amores. Mas a perda de um fiho é a perda das perdas.

Tentei reconfortar a mim mesma acreditando que perder me faria amar melhor. Mas quando busquei um encontro, defrontei-me com a solidão. Quando quis um abraço, fui segregada.

Você sempre foi testemunha de meu tentar. E tentei tanto. Não preciso lhe dizer sobre lutar para atravessar as tardes de domingo sem enlouquecer. Sobre reagir em vão para preencher os espaços que ficaram vazios. Sobre tentar me convencer de que, afinal, valeria a pena continuar. Esperei que o tempo me trouxesse um pouco de esquecimento. Mas minha memória ficou para sempre aprsionada em um temp de dor. E esse tempo não fez nada além de secar flores e envelhecer fotos. Nesses 20 anos, sua presença indiferente testemunhou os invernos que suportei os silêncios desta casa vazia. Você, que em sua mudez entoou as melodias que embalaram minhas despedidas. Suavizou a rudez das portas que se batiam. Tive-o como companhia quando ligava todas as luzes e a casa parecia ainda mais escura.

Não consegui superar este vazio. Se foram os relevos, as curvas, as cores. Vou embora também, levando comigo esse deserto plano e opaco. Não quero recordações. Não quero bens. Não quero vínculos. Não é preciso que se preocupe com a solidão porque outras pessoas virão até você. Espero que não se machuquem como eu me machuquei. E que suas perdas sejam ao menos suportáveis. Porque eu já não sinto medo, já não sinto dor, já não sinto nada.

Para sempre

Clarissa

6 comentários:

Caco disse...

Sabe o que mais me impressiona nessa carta? Onde é que fomos achar tanta dor para escrever um texto assim??? Aos vinte anos!!!

Saudades.
bjs

Preta disse...

Eu não sei vocês, mas eu poderia tranquilamente resumir trechos da minha vida com esse texto.

E acho que tivemos nosso breve momento de genialidade naquela noite. Todo o resto de nossa produção literária sempre terá essa carta como parâmetro.

E quem ler essa carta tem a obrigação de dar um abraço nos autores, porque não existe no mundo pessoas mais machucadas que eles.

Caco disse...

Secamos umas quinze vacas e uns dez mil hectares de plantação de café com a quantidade de leite condensado e café consumidos naquela noite.

Anônimo disse...

Gente... que perfeita essa carta.... atemporal... parece Virginia Woolf, vou usá-la.
posso? e agora entendo porque a gente se abraça tanto ahahahhahahaha
bjus amigos do coração

Rochele disse...

Ai, que saudade. Sabiam que no mínimo duas vezes por ano eu vejo este vídeo?
Não sei se já disse, mas este texto de vocês ficou maravilhoso, profundo e denso.
Fora que tantas coisas aconteceram durante as gravações ou pouco depois. Lembram as coincidências?

Preta disse...

Gente, as coincidências. Que macabro, não?!